CAPÍTULO XIII - “O SUBVERSIVO DE PAULO AFONSO”

[CAPÍTULO XIII - “O SUBVERSIVO DE PAULO AFONSO”]

CAPÍTULO XIII

Eu não poderia deixar de relatar, sugerindo novo enfoque aos publicados da era dos governos militares, a intrínseca e também extrínseca relação entre o clero e as Forças Armadas, ou seja, o sim e o não, entre a farda e a batina. Os confrontos e os contrastes. Neste contexto, lato sensu, a “revolução” que deixou o país no obscurantismo democrático por 21 anos, transbordou de euforia um religioso de Petrópolis-RJ, que reconheceu no golpe a chance de um renovado país, livre dos comunistas ateus que ameaçavam a cristandade e se deslocou para o Rio de Janeiro com a ideia fixa de dar a bênção às tropas do general Olympio Mourão Filho, que vieram de Juiz de Fora para ocupar a Guanabara. Tempos depois, este missionário chamado Paulo Evaristo Arns, foi ordenado bispo e em 1970, assumiu como arcebispo de São Paulo. Dali em diante, o outrora fanático da ascensão dos militares tornou-se irredutível na contestação e denúncia dos crimes hediondos e imprescritíveis da ditadura, principalmente durante os temíveis “anos de chumbo” do presidente Médici.

Reitero que Don Paulo lutou contra a tortura, insuflou o memorável ato na Catedral da Sé em memória do jornalista Vladimir Herzog, fundou a Comissão Justiça e Paz e aderiu ao projeto Brasil: Nunca Mais, que evitou o desaparecimento de milhares de documentos essenciais para relatar o histórico dos fatos. “Nos tempos hodiernos, com justiça, é considerado um herói da insurgência contra os generais – um contraste e tanto com a adesão fanática prestada ao então recém-nascido regime totalitário, que, em maio de 1964, um manifesto assinado por 26 bispos da CNBB, agradecia aos “coturnos” por salvarem o país do perigo iminente do comunismo”. “Ao rendermos graças a Deus,” completava o documento, “agradecemos aos militares que, com grave risco de suas vidas, levantaram-se em nome dos supremos interesses da nação”. Contudo, tempos depois, as contestações do arcebispo são representativas dos comportamentos dos membros da Igreja Católica, ante as ignomínias do estado de exceção instaurado à força.

“No início, o apoio do clero ao golpe pode ter sido majoritário, mas não foi unânime. O bispo da cidade de Volta Redonda, Don Waldir Calheiros, foi quase um pioneiro: já na noite de 31 de março de 1964 leu um sermão cheio de comentários desabonadores à derrubada de Jango. Sem contar a oposição férrea de Don Hélder Câmara – um homem tão combativo que logo passou a ser monitorado de perto pelos golpistas. A partir de 1970, a imprensa não podia citar nem o nome de Don Hélder, para o bem ou para o mal; era como se o religioso, mesmo vivo e atuante, não existisse. Enquanto os dominicanos como frei Beto auxiliavam pessoas a fugir do Brasil, o arcebispo do Rio de janeiro, Don Eugênio Sales, oferecia ajuda a indivíduos perseguidos por outras ditaduras da América do Sul”. A ditadura não estava alheia a estes movimentos e começou a agir de forma cada vez mais dura. O padre Henrique Pereira Neto, auxiliar de Don Hélder, foi assassinado pelo Comando de Caça aos Comunistas (CCC), um grupo paramilitar, (precursor das milícias). A partir daí o regime perdeu o constrangimento e perseguiu a Igreja, peremptoriamente.

A reação dos eclesiásticos, em princípio foi tímida: em maio de 1970 viria o primeiro documento da CNBB denunciando a prática de tortura no país, mesmo assim com o cuidado de criticar também ações atribuídas à esquerda, como assaltos e sequestros. No mesmo ano, todavia, a prisão do secretário geral da CNBB, Don Aluísio Lorscheider, pelo departamento de Ordem política e Social (DOPS) azedou completamente o diálogo. Era a primeira vez que um alto dirigente da instituição viu-se na custódia dos militares. Os cardeais enviaram uma carta diretamente ao então presidente, o general Emílio Garrastazu Médici, lamentando a “deterioração” de seus vínculos. O impacto internacional foi deprimente: a imprensa do vaticano espraiou o fato e até o papa Paulo VI manifestou publicamente apoio aos bispos brasileiros. As relações entre Igreja e o Governo militar jamais seriam as mesmas.

Concomitantemente a estes acontecimentos da famigerada era Médici, eu, no calabouço militar paulista, pouco ou quase nada sabia dos acontecimentos lá fora e sentia na pele alguns dos maus tratos elencados no capítulo anterior, que ainda hoje me causa calafrios pelas torturas e sevícias que abomino lembrar. Mas, por um acaso do destino ou não, a liberdade, embora parcial, bateu na minha prisão solitária. 

Isto narrarei no próximo episódio... 

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